Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura da UFMT
Este artigo foi produzido quando diferentes sons de tribos diversas soavam forte durante o carnaval. No ar, ainda há restos de cinzas da festa de momo. Mas se a festa acabou, a boa música não. Ela resiste ao tempo e aos ataques que sofre, livrando seus apreciadores da produção do lixo musical aderido pelos menos exigentes. Por isso, hoje, homenageio um dos espaços culturais mais importantes e inteligentes que temos por aqui: a casa noturna "Choros e Serestas", mais conhecida - carinhosamente - como "Chorinho".
Quem lê meus artigos pode estranhar a homenagem. Em geral, prefiro a leitura política mais explícita do cotidiano. Então, por que isso? Motivos não faltam. Destaco um: a predominância do ritmo samba presente naquele espaço, o que faz lembrar a famosa casa da Tia Ciata - onde sempre tinha "samba do bom" - ou a casa de um Martinho da Vila, onde "todo mundo é bamba, todo mundo bebe, todo mundo samba". Mas samba e política andam de corpos quase sempre juntos, como se dançassem bem colados sob olhares - embora admirados - nem sempre atentos ao que realmente veem (agora, sem o circunflexo!).
Como assim? Exemplifico com "Sampa" de Caetano Veloso; embora muito conhecida, essa música esconde algo. No todo, seu texto trata de um jovem "retirante intelectual", chegando pela primeira vez em São Paulo. De cara, duas perplexidades se lhe apresentam: 1ª) a dureza/altura do concreto dos edifícios no cruzamento das avenidas Ipiranga e São João; 2ª) a novidade da poesia concreta (1956), que experimentava abandonar o verso tradicional e supervalorizar os espaços existentes no texto poético, entremeado de outros elementos não-verbais. Por isso, depois do eu-lírico (que corresponde à voz nos poemas) de "Sampa" falar "Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas...", diz também que vê "...surgir teus poetas de campos e espaços.../Teus deuses da chuva".
Dos recortes, há referências não percebidas por muitos. Eis algumas: "campos" referem-se ao sobrenome dos irmãos e poetas concretistas Haroldo e Augusto de Campos; "espaços" dizem respeito aos intervalos entre figuras/linhas geométricas - presentes na poesia concreta -, assim como os espaços que há entre os arranha-céus; "deuses da chuva", numa irônica antítese, são os Demônios da Garoa, importante grupo do samba paulistano.
Pois bem. Infelizmente, pela ditadura do mau gosto - sustentada pelas aberrações do politicamente correto -, o bom samba ainda não ocupa o lugar que deveria. Penso que um dos motivos seja sua capacidade de tencionar tão bem a realidade. Acontece que essa tenção apresenta-se, muitas vezes, de forma tão figurada que dificulta a fruição imediata do texto. Agora, sem elitismo algum, lembro que boa poesia não é e nem pode ser óbvia. No mais, e antes de tudo, um bom samba é boa poesia, só que musicada.
Mas como o samba tenciona o real concreto sem perder a ternura do ritmo e a malevolência dos gingados? Isso depende da habilidade do compositor e da época. Ex: no primeiro samba gravado ("Pelo Telefone", de 1917), seu autor (Donga) diz que "O chefe da polícia/ pelo telefone/ mandou me avisar/ Que na Carioca (uma praça no Rio) tem uma roleta para se jogar...". Ora, querendo ou não, aquele samba denunciava uma prática de contravenção social, exercida por uma autoridade que deveria combatê-la.
Um outro registro que tenciona sua época - lembrado casualmente aqui - é "Vai Passar" (1984) de Chico Buarque. Em estilo de samba-enredo, repleta de figuras, a música grita pelo final da ditadura no Brasil; algo que já fora feito, magistralmente, em "Apesar de você" (1970) pelo mesmo autor. Tais sambas desafiavam os militares golpistas de 64.
Por esses e tantos outros sambas maravilhosos, os raros locais que privilegiam esse ritmo devem ser absolutamente cuidados e defendidos por parte de todos os que são capazes de compreender a importância disso na vida cultural e política brasileira. Para essa defesa - lembrando uma canção de Tim Maia, que não era sambista -, "vale tudo... ".
Agora, com a licença do Mestre Pixinguinha, um "carinhoso" beijo ao Chorinho e às pessoas sensíveis à qualidade musical. Que cada final de semana - com as fortes batidas nos surdos, tamborins, pandeiros e com o tinir das cordas de aço dos violões e cavaquinhos - seja como o pulsar forte de um coração sadio, mesmo que leviano, chorado por Paulinho da Viola. Salve o samba! Salve a força mágica dos sambistas mais velhos. Salve a alegria da juventude que por lá "passa, com graça" e, às vezes, "fazendo pirraça...". Viva o Chorinho!